Transformação de clubes em SAF impacta modelo de gestão do futebol brasileiro

Pré-temporada 2022, na Toca da Raposa 2, em Belo Horizonte. Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro IMPORTANTE: Imagem destinada a uso institucional e divulgação, seu uso comercial está vetado incondicionalmente por seu autor e o Cruzeiro Esporte Clube. IMPORTANT: image intended for institutional use and distribution. Commercial use is prohibited unconditionally by its author and Cruzeiro Esporte Clube.
Botafogo e Cruzeiro foram os dois primeiros clubes a aderirem ao novo formato
Por Adriano Sirius e Luís Schuh Bocatios | Foto: Gustavo Aleixo/Cruzeiro
Em agosto de 2021, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), que possibilitou a transformação do modelo de gestão do futebol brasileiro, e representou uma chance de recuperação para clubes que se viam afundados em dívidas, como Cruzeiro e Botafogo. Além deles, Bahia e Vasco da Gama também estão avançados no processo de transformação em SAF.
Outros clubes brasileiros também já aderiram à ideia de transformação em SAF e estão em busca de investidores, como é o caso do Londrina e da Chapecoense. No entanto, o processo desses clubes ainda se encontra em um estágio inicial. Contudo, esse modelo de gestão parece ser o futuro do futebol brasileiro, e, em médio prazo, deve atingir a maior parte dos clubes do país.
Para o vice-presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/PR, Alberto Goldenstein, a SAF surgiu como um meio para o desenvolvimento do esporte no Brasil: “Nesse sentido, a Sociedade Anônima do Futebol surge para tutelar e proteger o futebol. É um movimento de desenvolvimento e consolidação do futebol como um grande produto da indústria do entretenimento”, declara.
Segundo Goldenstein, a SAF pode ter três modelos diferentes de gestão: “No primeiro modelo ela começa do zero, ou seja, as pessoas decidem criar uma Sociedade Anônima do Futebol e iniciam suas atividades. Existe um segundo modelo onde a associação vira uma SAF, mudando sua atividade jurídica, e existe um terceiro modelo, mais comum, que consiste em uma cisão do departamento de futebol dos clubes, onde a associação se mantém vigente com seu patrimônio e o departamento de futebol vira uma SAF”, explica.
MODELOS DE SAF
O primeiro modelo é o do Azuriz, clube do interior do Paraná gerido por um grupo de empresários, que visa, fundamentalmente, a formação de jogadores nas divisões de base, que, após serem vendidos, gerarão lucro para os acionistas.
O segundo modelo, ainda não adotado no Brasil, consiste na transformação da associação em Sociedade Anônima do Futebol, mudando sua atividade jurídica e focando apenas na gestão do futebol.
O terceiro modelo consiste na separação do clube social e do departamento de futebol, deixando os conselheiros e sócios gerirem a parte social, e cedendo a gestão do futebol para seu novo dono, o que inclui compra e venda de jogadores e contratação de profissionais. Esse foi o modelo aderido por Botafogo e Cruzeiro.
Goldenstein reforça a diferença entre modelos de gestão da SAF e o caso do Red Bull Bragantino, que teve sua parceria com a Red Bull iniciada em 2019. “No caso do Bragantino, a própria Red Bull adquiriu os direitos de uma associação e a transformou em Red Bull Bragantino, alterando nomenclaturas e marcas. É um modelo de clube-empresa que não é regido pela Sociedade Anônima do Futebol, mas previsto pela Lei Pelé”.
Esse modelo se aproxima daquele que também é usado no Bayern de Munique. No caso do clube alemão, a associação mantém 50%+1 das ações do clube, e o restante delas é dividido entre empresas co-gestoras, como a Audi, a Allianz e a Adidas.
Segundo o advogado, as participações societárias da SAF podem ser negociadas no mercado financeiro, por exemplo. Contudo, o vice-presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/PR avalia como difícil esses ativos irem à bolsa, como é o caso da Juventus, clube italiano de Turim: “É um clube regido pelas leis italianas da Sociedade Anônima do Futebol, mas que está na bolsa de valores como um ativo. Hoje, no Brasil, esses ativos são, na maioria das vezes, adquiridos por uma única pessoa ou grupo”.
EXEMPLOS BRASILEIROS
Botafogo

Presidente do Botafogo, Durcesio Mello firma contrato com John Textor para a venda de 90% da SAF do Glorioso. Foto: Reprodução/Botafogo
O projeto de transformação do Botafogo em SAF começou no meio de 2019, quando, após anos sofrendo com administrações que aumentavam a dívida do clube até transformá-la em praticamente impagável, os irmãos Moreira Salles – João e Walter, diretores de cinema e torcedores fanáticos do Botafogo – encomendaram um estudo com a empresa Ernst & Young sobre uma possível solução para fazer o alvinegro voltar a ser competitivo a nível nacional. Após uma análise aprofundada da situação, a empresa recomendou que o futebol fosse separado da parte social do clube e gerido de forma profissional.
No mesmo ano, ocorreu uma votação entre os conselheiros que aprovou o início da transformação do Botafogo em clube-empresa. Então, começou o processo de busca de investidores.
Inicialmente, a ideia era que as ações fossem divididas entre diversos investidores – tanto pessoas físicas quanto empresas e fundos de investimento. No entanto, com o advento da pandemia, as negociações foram sendo esfriadas.
Constantes declarações dos dirigentes Carlos Augusto Montenegro e Ricardo Rotenberg levavam a crer que o projeto estava prestes a sair do papel. Após inúmeros prazos que não se cumpriram, a crença da torcida alvinegra na execução do projeto foi se tornando cada vez menor. Com a queda para a série B em 2020, a esperança se tornou quase nula.
Porém, em Novembro de 2020, a eleição para presidente do clube teve como vencedor o candidato Durcesio Mello, que tinha como sua principal proposta a profissionalização do futebol do clube – com ou sem a SAF, mas mirando a execução dela.
Seu principal ato nessa direção foi a contratação do CEO Jorge Braga, especialista em recuperar empresas que passam por dificuldades financeiras. Implementando um estilo de gestão que gerou conflitos entre dirigentes, o CEO realizou cortes de gastos, renegociou dívidas de curto prazo e reorganizou completamente a estrutura interna do clube.
Até que, no dia 24 de dezembro de 2021, a diretoria deu um presente de Natal à torcida: o anúncio de que o americano John Textor – acionista do Crystal Palace – havia fechado um acordo para a compra de 90% do clube por 400 milhões de reais.
No início de janeiro, o empresário chegou ao Rio de Janeiro para assinar a oferta vinculante e foi recebido com festa por torcedores no aeroporto Santos Dumont. A festa não parou por aí: no dia 13 do mesmo mês, quando os conselheiros aprovaram efetivamente a venda do futebol botafoguense, a torcida lotou a sede do clube para comemorar o fim do amadorismo na administração.
Após quase dois meses de burocracias contratuais – que, por se tratar de uma transição internacional milionária, eram muito extensas -, Textor assumiu de vez o comando do alvinegro carioca. Ocorreram mudanças no comando técnico, na diretoria de futebol, na comissão técnica e nos contratos com patrocinadores e fornecedora de material esportivo, além do investimento de mais de 60 milhões de reais em contratações para o time principal.
Cruzeiro

Cria do clube e consagrado mundialmente, Ronaldo adquiriu 90% da SAF do Cruzeiro. Foto: Reprodução/XP
Apesar do Botafogo ter sido o primeiro a dar início ao processo de transformação em SAF, o Cruzeiro foi o primeiro a concretizar a venda. E não foi para qualquer um: Ronaldo Fenômeno, revelado pelo clube e um dos maiores jogadores de todos os tempos, foi o comprador.
Ao contrário da organização interna paciente realizada pelo Botafogo, a transição do Cruzeiro para clube-empresa foi feita às pressas.
Após a descoberta de escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro por membros da diretoria do clube, em 2019, uma crise poucas vezes vista em um clube brasileiro se instaurou na Toca da Raposa.
Junto a isso, o desempenho do time em campo – que, até então, era a melhor campanha da fase de grupos da Libertadores – também desabou, e, após várias trocas de técnico, desavenças no elenco e meses de salário atrasado, o Cruzeiro foi rebaixado para a série B do campeonato brasileiro pela primeira vez em sua história.
Com um cenário de terra arrasada, imensas dificuldades para montar o elenco e perda de pontos por dívidas não pagas, o clube também se tornou, em 2020, o primeiro dos chamados doze grandes do futebol brasileiro a não voltar para a série A no primeiro ano após o rebaixamento – além de correr o risco de descenso para a série C durante boa parte do campeonato.
Como se não fosse suficiente, o clube também não voltou para a série A na temporada seguinte, e, no final de 2021, anunciou a venda da SAF para Ronaldo.
No entanto, o novo dono do clube encontrou algo diferente do que lhe foi prometido. Dívidas foram omitidas e condições péssimas foram suavizadas, o que gerou um desconforto muito grande entre Ronaldo e a diretoria do clube.
O acordo foi anunciado pelo valor de 400 milhões de reais. No entanto, o montante acabou sendo desmentido, e foi esclarecido que o real investimento seria de 50 milhões, e outros 350 milhões viriam de incremento de receitas e aporte direto – ou seja, se o clube não atingir um determinado valor na receita anual, o investidor tem a obrigação de desembolsar a diferença. Os aportes diretos são investimentos específicos que o comprador pode fazer, como a compra de um jogador, pagamento de multa rescisória ou melhoria de estruturas.
Contudo, as diferenças entre Ronaldo e a diretoria do clube estão sendo remediadas, e o ex-jogador parece determinado a fazer as pazes entre o presente do Cruzeiro e sua história de títulos e grandes vitórias.
Vasco da Gama
Outro dos clubes brasileiros afundados em dívidas, o Vasco da Gama também planeja se transformar em SAF ainda este ano. O principal interessado é o fundo de investimentos 777, que também administra clubes como o Sevilla, da Espanha, e o Genoa, da Itália.
O grupo americano pretende investir 700 milhões de reais no clube carioca, e depende da aprovação do conselho vascaíno para adquirir 70% das ações do cruz-maltino.
Em entrevista concedida na véspera de um clássico entre Vasco x Flamengo, o executivo Josh Wander – um dos responsáveis pela negociação pelo lado da 777 – garantiu que esse seria o último clássico contra o Flamengo no qual o cruz-maltino entraria em desvantagem financeira.
Os torcedores estão animados com a ideia, mas o histórico político do Vasco gera dúvidas sobre a concretização do acordo. Apesar do conselho ter aprovado os primeiros passos da negociação, já há atos judiciais que tentam derrubar a votação. Levando em conta que as últimas eleições do clube terminaram na justiça, a história parece longe de ter um fim.
Bahia

Guilherme Bellintani conversa com o Grupo City sobre a aquisição da SAF do Bahia. Foto: Reprodução/ EC Bahia
O Bahia pode ser o primeiro clube do nordeste a se transformar em SAF. Em negociações avançadas com o City Football Group – que também administra clubes como o Manchester City, New York City e Melbourne City – o tricolor de aço deve ter 90% de suas ações adquiridas nos próximos meses pela quantia de 650 milhões de reais.
Segundo o UOL, o primeiro aporte, do valor de 50 milhões, seria realizado imediatamente após a compra. Caso o clube consiga o acesso para a série A do campeonato brasileiro, outros 150 milhões seriam investidos na virada do ano, viabilizando a montagem de um elenco qualificado para a disputa da primeira divisão. Os outros 450 milhões serão divididos igualmente entre os anos de 2023 e 2024.
No momento, o clube baiano aguarda a apresentação da proposta oficial, para que, assim, possa levá-la ao conselho deliberativo e realizar a votação que aceitará ou não a venda do futebol do clube.
VANTAGENS DA SAF
Mesmo com o temor de que os clubes poderiam deixar de arcar com as suas obrigações com os credores, Goldenstein esclareceu que a lei é rígida, “a própria lei é muito clara na responsabilização dos agentes e isso traz segurança jurídica”.
Para os clubes de menor expressão, o advogado avalia como uma oportunidade de valorização do próprio clube: “O clube que é menor e tem menos dívidas, talvez tenha uma saúde financeira e um poder de barganha muito maior do que um grande clube que está completamente endividado”, afirma.
A transformação dos clubes de futebol em Sociedades Anônimas garante maior estabilidade financeira e maior responsabilidade com as despesas, o que deve revolucionar o futebol brasileiro em termos de gestão e dar mais segurança a todos os envolvidos no negócio do futebol, tanto em termos financeiros quanto em termos de projetos esportivos.