Religiões afro-brasileiras lutam contra o preconceito há quase 100 anos em Curitiba

Evidências de praticantes da Umbanda e do Candomblé na cidade datam do começo do século XX. Atualmente, ainda há resquícios do sofrimento que viveram
Por Davi Guiarzi, Emilly Kauana Alves e Mariana Uniati | Fotos: Hemeroteca digital e Davi Guiarzi
Desde a formação dos primeiros terreiros, umbandistas e candomblecistas sofrem ataques devido ao desconhecimento da população geral. “Macumbeiros” e “feiticeiros” eram termos que frequentemente ganhavam as páginas dos jornais curitibanos. Muitas das vezes, as reportagens tinham um olhar pejorativo e incriminador. A intenção era expor um “crime”, escancarando o preconceito que havia sob as religiões afro-brasileiras.
As primeiras notícias depreciativas surgem na década de 20. Geralmente referenciadas pelo termo “macumba”, as religiões passaram décadas sendo perseguidas por alguns noticiários. “Enquanto Curytiba dorme… as macumbas das sextas-feiras” – manchete do Diário da Tarde em 1929. Uma edição de 1930 referenciava o Candomblé como “um mal indisfarçável”. No âmbito esportivo, clubes contrataram “macumbeiros” para ganharem seus jogos, como relata uma edição do Paraná Esportivo em 1950. “A macumba teria sido perfeita, se o auxiliar do pai de santo não tivesse falhado nos despachos”. Por não ter conhecimento, o povo curitibano julgava umbandistas e candomblecistas como marginais e “praticantes de magia negra”.
A linha que essas manchetes seguiam divergia de um periódico para outro. Jornais como o Diário da Tarde e o Diário do Paraná publicaram matérias de cunho depreciativo até meados da década de 50. “Até gente de ‘bem’ frequenta terreiros”, era o destaque do jornal de Assis Chateaubriand em 1955. Em contrapartida, no mesmo ano, o periódico O Dia desmistificava alguns estereótipos. “Sempre ouvi dizer que nesses lugares havia sacrifício de gato preto. Onde estive não vi gato, nem preto nem de outra cor, muito menos degolado”.
Nesse contexto, a sociedade começou a desenvolver uma visão menos etnocêntrica com o tempo. Mestranda em antropologia social na UFPR, Jaqueline Soares explica a legitimação das religiões afro-brasileiras a partir da década de 60. “Além de um aumento no número de matérias destinadas a essas religiões, ocorre uma forte tendência na apresentação de conteúdos positivos”. Consequentemente, a situação das religiões de matriz africana apresentou uma melhora significativa naquele período.
Uma amostra disso é a criação da coluna “Umbanda/Candomblé”, que perdurou diariamente entre 1978 e 1979 no Diário do Paraná. Na celebração de seu primeiro ano, em 1978, o babalorixá Edson Centanini descreveu como foi difícil praticar a sua fé até aquele momento. “Éramos chamados de macumbeiros e de gente que somente pratica o mal. Por esse motivo, sofríamos o desprezo da maioria do povo e não raramente repressão policial”. Os textos assinados por Dirce Alves ajudaram a desenvolver uma abertura de pensamento na sociedade. Houve um princípio de aceitação e de crescimento das religiões afro-brasileiras na capital paranaense.
Ainda é difícil
Mesmo com a melhora em relação ao passado, Curitiba ainda vive em uma bolha de desconhecimento. É o que explica a espiritualista e presidente do Instituto Afro-Brasil do Paraná, Wil Amaral. Ela diz que é confundida como praticante de Umbanda frequentemente. “Por ser preta, e pela forma que me visto, com turbantes e roupas coloridas, acham que sou umbandista”. Will relata que as pessoas lhe pedem bênção, ou coisas que não está preparada religiosamente para sanar. “Não é porque uma pessoa preta está toda de branco que ela vai ser do Candomblé ou da Umbanda”.
Na Praça Tiradentes existe um círculo de gameleiras, árvore de valor sagrado para as religiões afro-brasileiras. Para marcar o local, foi colocado uma placa que conteria uma menção à Oxalá, o orixá mais poderoso. “Quando a Prefeitura não deixou colocar Oxalá, usamos símbolos paranistas (dois pinhões) para formar um machado. Porém, alguém ouviu a gente falando e quebraram” – lamenta Kandiero, cofundador do Centro Cultural Humaitá. Para vários povos africanos, o Machado de Xangô é um símbolo que representa a justiça. A referência não foi permitida com a justificativa de que a cidade é laica.

A mensagem original seria “A raiz negra em Curitiba é forte, muito antiga e traz as bênçãos de Oxalá”
Fundado em 1988, o Terreiro Pai Maneco é um dos mais conhecidos de Curitiba. Apesar disso, o lugar sofreu um incêndio criminoso em 2016. Partes significativas do terreiro foram destruídas pelo fogo, incluindo altares e objetos sagrados. O ataque foi amplamente denunciado como um ato de intolerância religiosa e, entretanto, nenhum criminoso foi detido.
Mãe de Santo e tesoureira do terreiro, Camila Guimarães afirma que o incêndio não foi um caso isolado. “Nossa líder espiritual já levou um tapa na cara enquanto estava dirigindo a gira”. Camila relata que o Pai Maneco sofre diversos tipos de atentados, inclusive de praticantes de outras religiões. “Já sofremos ataques cibernéticos e o nosso terreiro já foi apedrejado com pedras enroladas em versículos bíblicos”.
Diante do problema, a Mãe explica o que é fundamental para o etnocentrismo da sociedade diminuir. “Precisam ter educação e conhecimento para saber que todas as religiões devem (ou ao menos deveriam) levar para um único caminho”.
Preconceito histórico
Durante décadas, as práticas de matriz africana sofreram com calúnias e discriminação pela mídia. Muitas histórias (hoje estranhas e pejorativas) foram veiculadas pelos jornais e influenciaram a opinião da sociedade sobre essas religiões. Observe que essa visão cultural limitada formou o pensamento de toda uma cidade durante muitos anos. Hoje, algumas dessas histórias servem como fontes de aprendizado histórico e cultural. Veja:
Guerra à macumba
Diário da Tarde – 1930
Em uma quinta-feira, 21 de agosto de 1930, o jornal Diário da Tarde publicava uma manchete confrontadora: “Guerra à macumba”. Os primeiros parágrafos anunciavam a prisão do “temível macumbeiro” Carlos Fernandes, condenado a sete meses de reclusão. Segundo a reportagem, o “feiticeiro audacioso” usava corações de crianças para operar milagres absurdos. O texto lamenta que o Candomblé está “disseminado por todos os cantos”, realizando bruxarias que o “bom senso, a moral e a higiene” condenam. O jornal finaliza culpando as autoridades do país, que não se puseram a agir energicamente e continuadamente contra os “ludibriadores da crendice popular”.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/docreader/800074/35013
Político pede despacho para Manoel Ribas?
Diário da Tarde – 1934
A reportagem começa relatando o drama de Nair Ribeiro, residente da Rua Visconde de Guarapuava em 1934. A mulher vomitou um despacho, contendo maços de cabelo, pelos de sapo e diversos detritos. Na investigação do caso, a equipe do jornal pegou em flagrante um político encomendando uma macumba. O alvo seria outro político, com a inicial do nome M. “Moreira Garcez, Manoel Ribas, Munhoz da Rocha, Menna Barreto, Machado Lima, Marins Camargo, Maciel, Marques, Manoel Franco. Contra quem será o despacho?”. – indaga a reportagem. O jornal ainda ameaça o político a não concluir o despacho, caso o faça, teria seu nome exposto.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/docreader/800074/41446
Um caso de amor
Diário da Tarde – 1934
Em uma conversa com um pai de santo, o jornalista explicou como era extremamente apaixonado por uma mulher. “Ela, porém, não tem o coração livre e não nota o meu desespero. O que devo fazer?”. O sacerdote pediu 10 mil réis para o repórter, que prontamente voltou no dia posterior para receber instruções. Deu-lhe uma faca e uma colher virgens, ou seja, que nunca foram usadas. Pediu também que o visitante fosse até o cemitério, na próxima sexta-feira, entre meio dia e seis horas. “Junto a uma sepultura, tire o sapato do pé esquerdo e como ele descalço pise forte no barro úmido. Depois com a faca risque o contorno do seu pé e retire o barro de dentro da linha”. Isso aconteceu durante três sextas-feiras, e a cada vez o jornalista deveria colocar o despacho na porta de sua amada. Por cada despacho, o homem cobrou-lhe 50 mil réis, mas o repórter não seguiu as instruções. A reportagem termina dizendo que o intuito não era expor o “feiticeiro” para a polícia, porém, criticam a cobrança pelos serviços. “Eles seriam inofensivos e ridículos, se não fosse a extorsão ao bolso dos ingênuos”.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/docreader/800074/42590
Despacho no Boqueirão
Diário do Paraná – 1955
A reportagem publicada em dezembro de 1955 no Diário do Paraná mostra a forma de que os terreiros, os umbandistas e os candomblecistas continuavam sendo mal vistos nesta época. Há uma introdução de como era crescente o surgimento de terreiros nos grandes bairros de Curitiba. Ao visitar um deles, o repórter destaca que os “donos da casa” tinham pavor de máquinas fotográficas. Além de induzir que o “público esclarecido” iria ficar espantado com o que acontecia dentro do terreiro. “Se sai com a impressão de ter assistido a um conclave de loucos”. Ao final, a reportagem ainda recebe uma denúncia de um despacho feito às margens do rio Iguaçu, no Boqueirão. “O despacho chegou a amedrontar os moradores das proximidades, que muito agradeceram ao delegado a suspensão do festim”.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/761672/8493
Operário-PR e seus despachos
Paraná Esportivo – 1956
Os times de Ponta Grossa se enfrentaram duas vezes no primeiro semestre de 1956, jogos válidos pelo campeonato paranaense de 1955. O Operário teria contratado um macumbeiro para ganhar os três jogos, sequência que se encerraria no embate contra o Guarani (que terminou empatado em 2 a 2). O despachante preparou uma camisa que deveria ser usada pelo alvinegro naquele jogo. No entanto, pela semelhança dos uniformes, o Operário teve que trocar de última hora e “anulou o despacho”. O macumbeiro ficou “doido da vida” e prometeu nunca mais trabalhar com o Operário. Cerca de um mês depois, no dia 26 de fevereiro, os times se enfrentaram novamente. O Fantasma havia contratado outro pai de santo para fazer “despachos favoráveis”. Entretanto, o Guarani venceu o jogo por 2 a 1 e assumiu a liderança do campeonato.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/761567/2018
http://memoria.bn.gov.br/DocReader/761567/2122
Reportagem “engana” pai de santo
Correio da Noite – 1959
A data é 17 de junho de 1959 e a equipe do jornal Correio da Noite adentra em um terreiro para “verificar a faceta desses embustes”. O descrente repórter, após dialogar com o pai de santo, pede para ele descobrir o nome que o jornalista tem tatuado no peito. O umbandista, em contrapartida, diz que Caboclo (guia espiritual) irá mostrá-lo em um copo d’água. Entretanto, somente o repórter não conseguia ver o nome. O blefe acontece quando uma jovem pergunta ao jornalista qual era o nome em questão, recebendo uma resposta falsa. A jovem conta ao pai de santo, que então diz o nome. Com conteúdo para sua matéria e satisfeito, o repórter agradece a todos e se despede do terreiro.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/830119/129
Esposa sofre com parentes do terreiro
Última Hora – 1964
Ana Cordeiro era casada com Anor Cordeiro e procurou a polícia após o marido levar os filhos e abandoná-la. Segundo Ana, os parentes do casal tentavam há muito tempo separá-los. Os cunhados começaram a cortejá-la, na tentativa de consumar uma traição. Porém, não obtiveram êxito e mudaram o foco para o marido. Este não foi forte o suficiente e começou a ter relações com a cunhada. Para a polícia, Ana justifica o abandono à despachos feitos pelos parentes. “Todos eles são macumbeiros e tem um terreiro no bairro de Novas Oficinas. Quase diariamente faziam despachos e trabalhos para conseguirem a separação”.
Confira na íntegra: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/830348/19629
Recomendação
Para conhecer mais profundamente as especificidades da Umbanda, assista a um documentário produzido pelo estudante Pablo Ryan. Nele, os integrandos do Terreiro Sete Cachoeiras trazem seus depoimentos relatando as contribuições que a religião fornece para suas vidas. Os personagens também expõem, com serenidade, as características de sua fé. Na tentativa de combater as dificuldades que o mundo exterior propicia nos dias de hoje. Veja: