Número de denúncias contra abuso infantil aumenta 63% no primeiro trimestre de 2024

por Pietra Gabiatti
Número de denúncias contra abuso infantil aumenta 63% no primeiro trimestre de 2024

Em comparação aos três primeiros meses de 2023, o aumento no número de denúncias retrata não somente o aumento de casos, mas a conscientização da população acerca do tema

Por Pietra Gabiatti

Um levantamento exclusivo do Jornal Comunicare avaliou dados coletados pelo Disque 100 nos primeiros trimestres de 2023 e 2024. Canal de atendimento do governo nacional, o Disque Direitos Humanos recebe denúncias que se enquadram como violações dos direitos humanos, e atua no registro de situações que acabaram de ocorrer, além de auxiliar no contato com instituições para realizarem o flagrante.

Observa-se que o mês de março apresentou uma queda no número de denúncias de abuso à criança e ao adolescente em comparação com fevereiro deste ano (2023), de acordo com dados divulgados pelo Disque 100. São 224 denúncias a menos, o que parece uma queda considerável. Porém, ao analisar os valores, tal queda é de 1399 denúncias (fevereiro) para 1175 (março), o equivalente a 16% a menos do que o mês anterior.

São valores altos, se comparados com o ano passado, quando foram registradas 601 denúncias em fevereiro e 812 realizadas em março. Ao traçar uma média entre os primeiros trimestres de 2023 e 2024, é observado um aumento de quase 63% no número de denúncias.

Organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano de 2023 escrito pela professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Luciana Temer, tem início com o seguinte questionamento: “Houve aumento do registro de todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes. Este crescimento representa um aumento real do número de casos ou um aumento das denúncias?.”

No anuário, o principal registro de violência sexual é também o mais brutal: o estupro. Foram 73.024 mil casos no brasil, 56.820 se caracterizam como estupro de vulnerável, o que significa que a idade da vítima é menor do que 14 anos, ou ter alguma enfermidade ou deficiência que a impeça de consentir conscientemente.

Deste número de estupro de vulnerável, em 40.659 dos casos, a vítima tinha até 13 anos. A professora, no anuário, também compara este dado com o de 2022: “Este número representa 61,4% de todos os estupros registrados em 2022, o que, por si só, já é extremamente preocupante.” Porém, a frase também escrita no anuário, é a conclusão dos dados avaliados pela professora: o gênero das vítimas de estupro de vulnerável, são meninas (86%).

“A maioria das vítimas de estupro no Brasil não é mulher, é menina.” – Luciana Temer

Em Curitiba, um dos locais especializados para atendimento infantil é o Hospital Pequeno Príncipe, que atua no atendimento de casos de suspeita de violência desde 1970. Instituição pediátrica presente há mais de 100 anos, é a principal referência de tratamento infantil no país, e desde 2006 promove a campanha Pra Toda Vida – A Violência não Pode Marcar o Futuro das Crianças.

No ano de 2022, foram 652 crianças e adolescentes atendidos por suspeita de abuso e maus-tratos, e destes, 375 vítimas de violência sexual. De 2022 até o ano passado (2023), houve um aumento de 14% no número de casos. Foram 745 ocorrências, e 435 casos de violência sexual.

No Pequeno Príncipe, também podem ser aplicados os mesmos resultados obtidos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, já citado anteriormente: o Hospital também identificou um maior número de vítimas, meninas, 68,7% dos casos.

Por mais que pareça irônico, talvez seja óbvio que o ambiente domiciliar seja o local onde mais ocorrem as violências. Ao comparar os dados apresentados pelo anuário e pelo site organizado pelo Hospital, com 72.2% de casos no país são no ambiente familiar, e 73,8% dos casos no Pequeno Príncipe são da mesma natureza. 

A violência sexual foi a que mais teve número de casos no Hospital, com 56.1%. Atrás dela, negligência e violência física, com 23.1% e 11.9%.

Além dos dados: Os impactos observados nas crianças

Após a análise das informações citadas e com o objetivo de compreender os processos que decorrem antes, durante, e após a violência – além de auxiliar na compreensão dos impactos que causa – entrei em contato com uma profissional que atua em casos como este.

Psicóloga do Hospital Pequeno Príncipe e atuante na instituição há mais de 20 anos, Daniela Prestes afirma que existem vários tipos de violência: “A violência intrafamiliar é normalmente aquela que acontece dentro do seio familiar e que é perpetrada por alguma pessoa que é conhecida. O pai, a mãe ou o padrasto, até um irmão mais velho ou um primo, por exemplo. E nesse contexto onde a rotina é conhecida, é também onde as pessoas têm vínculos afetivos. Um outro tipo é a violência extrafamiliar, perpetrada fora do contexto familiar, do contexto do lar, praticada por pessoas, às vezes conhecidas, às vezes desconhecidas.”

Apesar dos dados a respeito da violência contra a criança e o adolescente terem importância para a identificação do problema, informações a respeito das crianças e o contexto no qual estão inseridas também possuem relevância. Mas, para que estas informações sejam reunidas, a identificação e o acesso até elas é ainda mais importante. O órgão responsável por realizar a abordagem e contato com as crianças e seus responsáveis, é o Conselho Tutelar.

Em gonzo: O contato com o Conselho

Dia 25 de abril, uma quinta-feira de manhã, estava a caminho do Conselho Tutelar. Cheguei 6 minutos depois do horário combinado para a entrevista, somente para descobrir que estava no endereço errado.

A regional Pinheirinho do Conselho Tutelar fica no Capão Raso, e foram só alguns minutos de caminhada para encontrar o endereço certo. Porém, esse erro custou 14 minutos de entrevista, além do tempo que tive que esperar por conta dos atendimentos que estavam na minha frente.

Assim que cheguei no local, um casal esperava sentado do lado de fora. Entrei diretamente pela porta, já que, nela, havia uma placa visível com a escrita “Entre sem bater.” Dois homens aguardavam atendimento, em pé, enquanto uma senhora também estava na fila para ser atendida, sentada em uma cadeira.

Fiz a mesma coisa: expliquei o motivo de estar ali, pela realização de uma entrevista com uma profissional do Conselho, que não queria fazer denúncia nenhuma. Então, fiquei atrás de todas as figuras que também aguardavam. Porém, não interessada em solicitar a abordagem do Conselho Tutelar, mas para entender o funcionamento dela em um caso específico: o abuso e violência contra crianças e adolescentes.

A espera durou cerca de 20 minutos. A profissional que me recebeu, e que também a entrevista estava destinada, é a Coordenadora do Conselho Tutelar de Curitiba. Com ela, estava a conselheira da regional do Pinheirinho. Juntas, as duas me guiaram até a sala onde seria realizada a entrevista.

O tempo limitado na agenda de ambas se deve, principalmente, por terem ficado acordadas até as 3 horas da manhã “resolvendo um B.O enorme”, como se referiam. A situação impactou na duração da entrevista, que demorou somente 15 minutos. Que foram muito bem gastos.

A profissional Claudete de Castro França, Coordenadora do Conselho Tutelar, discorre a respeito do trabalho realizado pelo Conselho: “Temos fluxos internos dentro do órgão, mas todas as denúncias são encaminhadas para investigação assim que possível. Temos denúncias que necessitam de intervenção na hora, onde chamamos de plantão. Por exemplo, suspeita de abusos, agressões físicas, todas as denúncias que colocam a criança em risco.”

A advogada Luciana, ao Anuário de Segurança Pública, finaliza dizendo que “Independente dos crimes terem aumentado ou não, vejo o aumento dos registros como uma notícia boa”. Provavelmente, mesmo que os crimes tenham aumentado consideravelmente, as denúncias também aumentaram. Tal fato facilita ainda mais para autoridades e até mesmo para a população obterem noção e conhecimento mais próximo do real. E menos quando vai até o tal do anuário. 

O anuário também cita uma pesquisa realizada pelo Datafolha no ano de 2022. Nela, 32% dos entrevistados sofreram algum tipo de violência sexual, mas somente 11% realizaram a denúncia. Então, intrinsecamente, talvez o foco não deva estar somente na identificação e atendimento destes casos, mas também, em compartilhar o dever de quem identifica o crime, que é denunciá-lo no canal mais acessível para quem deseja realizar a denúncia.

Anteriormente à realização da denúncia, é necessário – e obrigação – que adultos e/ou responsáveis em contato com crianças estejam atentos aos sinais de que uma possível agressão, física ou psicológica, possa estar acontecendo.

A psicóloga Daniela Prestes comenta: “Existem vários sinais que são de ordem cíclica, os sintomas psicológicos, como por exemplo. Ansiedade, medo, insegurança, palavras de auto recriminação ou de autodepreciação, baixa autoestima, isolamento afetivo e isolamento social. Porque veja, se justamente aquelas pessoas que deveriam cuidar, e é naquele ambiente, por aquelas pessoas, que frequentemente a violência está sendo cometida, então como a criança confiará em uma pessoa estranha?”

Nos dados divulgados pelo Pequeno Príncipe, há uma lista de sinais que podem ser identificados nas vítimas, são alguns deles:

  • Lesões na pele não compatíveis com a idade
  • Hematomas em várias partes do corpo e de diferentes colorações
  • Fraturas próximas das articulações, em costelas ou de crânio
  • Dentes fraturados
  • Aspecto de má higiene
  • Tentativa de esconder marcas no corpo

Fonte: Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência

E qual a conclusão?

O alto fluxo e urgência nos atendimentos, demandas diversificadas, somados à rapidez e ao número de casos que não param de chegar observados na regional Pinheirinho do Conselho Tutelar, é somente um exemplo no meio de inúmeros Conselhos espalhados por Curitiba. É o reflexo de uma instituição sobrecarregada com demandas que deveriam ser equilibradas com outros órgãos governamentais.

A regional do Pinheirinho, por exemplo, abrange os bairros Capão Raso, Fanny, Lindóia, Novo Mundo e Pinheirinho. É uma regional que está a disposição de mais de 100 mil habitantes.
Sem a presença de psicólogos e da assistência social para apoio às vítimas e/ou famílias que vão até o local realizar uma denúncia, observa-se a falha do programa, não em atender os casos que chegam, mas sim, na falta de amparo em áreas que não dependem somente do Conselho.

Um trabalho que consiste em zelar pela integridade física e psicológica de crianças e adolescentes, sem contar com apoio psicológico é no mínimo curioso, e gera inquietação. Mesmo sem apoio jurídico e profissionais especializados para orientar como se portar diante de inúmeras situações, como casos de grande repercussão na mídia ou com personalidades influentes, é dever do governo proporcionar orientação em como se portar em casos como este.

Mas este é um exemplo nichado ao Conselho. A falta de estrutura para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência não é restrito a este órgão, mas observado em diversos casos de abuso. A base para conscientização é a repercussão do tema, que felizmente já está em prática por inúmeras instituições, como o Hospital Pequeno Príncipe.

Porém, não é o suficiente. Após o levantamento dos dados durante a apuração, e por se tratar de uma problema de saúde pública, a barreira para diminuição no número de casos está nas medidas protetivas que se configuram à favor do jovem abusado. Cabe estritamente, e não somente, mas com grande peso ao estado o papel de auxiliar na elaboração dessas medidas, mas principalmente em auxiliar órgãos e estruturas que estão responsáveis e sobrecarregados por lidar com o alto número de casos.

 



“Violência é um problema de saúde pública que diz respeito a todos nós. Porque se não ajudarmos as crianças e adolescentes que estão sendo vítimas de violência agora nós podemos, não só agora, mas a longo prazo, ter grandes problemas de saúde pública. São cada vez mais crianças, adolescentes e adultos que vão parar nas instituições de saúde procurando ajuda, seja pela saúde física ou mental.”
Daniela Prestes, psicóloga

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90

O tratamento e cuidado para uma criança vítima de qualquer tipo de violência não é simples, é necessário cautela e adoção de abordagens específicas vindas dos profissionais e familiares do infanto. Este cenário não será resolvido caso não seja abordado com a devida importância e seriedade que ele apresenta. É um problema criminoso, malicioso e imperdoável.
A autora, jornalista e estudante

 

18 de Maio – Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes

Disque 100

 

 

 

 

Esta reportagem foi desenvolvida para a disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da PUCPR.

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