Brasil é o país com maior número de empregadas domésticas do mundo

Um dos motivos para o número de empregados aumentar a cada ano pode ser fruto do racismo que o processo de escravidão originou
Por Barbara Schiontek e Rita Vidal
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Alimentados pela desigualdade social e pelo preconceito diário que sofrem, a classe de empregados domésticos no Brasil tem aumentado a cada ano, conquistando o pódio de país com o maior número desses trabalhadores no mundo, segundo uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No último ano, cerca de 6,4 milhões de pessoas estavam empregadas no setor, de acordo com o IBGE. Em proporções, são três empregados para cada grupo de 100 habitantes, o que corresponde o trabalho doméstico como 6,8% dos empregos no país e 14,6% dos empregos formais das mulheres.
A empregada doméstica que prefere não se identificar relata que estava trabalhando em uma casa desde 2015. Ela comenta que essa foi a primeira experiência com esse tipo de serviço e que já havia trabalhado como diarista anteriormente, seguindo a profissão da mãe. “Eu pedi demissão porque eu não estava sendo reconhecida. Você se sente mal vendo que todas as profissões são valorizadas, exceto a de empregada doméstica. Essa é a menos valorizada que existe”.
Quando entrou na casa, ela fazia os serviços regulares, como passar roupa, cozinhar e limpar. Entretanto, ela havia dito que precisaria de reforço, pois a casa era grande. Dessa forma, seus patrões contrataram uma diarista. “A princípio eles eram patrões excelentes, não eram muito exigentes. Apesar de que eu sempre dei o meu melhor”.
Ela conta que quando iniciou seu emprego, sua patroa possuía um filho recém-nascido e que logo precisaria de cuidados. Foram contratadas babás, porém, nenhuma conseguiu continuar com o trabalho por muito tempo e, dessa forma, a própria empregada doméstica assumiu os cuidados com a criança.
O problema começou no final de 2017, quando o filho da empregada passou por uma cirurgia de emergência. Durante a recuperação da criança, ela não foi trabalhar e, de acordo com sua patroa, a lei diz que somente dois dias podem ser tirados para os cuidados maternais. “Eu sempre passei do meu horário de trabalho e nunca exigi hora extra. E o que me chateou foi que quando eu precisei me afastar por alguns dias para cuidar do meu filho, ela me disse que descontaria todos os dias em que eu faltei”.
Para a empregada foi uma situação bem complicada, pois ela nunca havia negado ficar em momentos que não diziam respeito ao seu horário regular para cuidar das coisas da casa e da criança. “Eu não fui atrás para saber se era certo o desconto ou não. Ela nunca me pagou a mais por ficar com o filho dela no sábado e durante a noite. Eu nunca cobrei por amor à criança”. Ela fala que após o acontecimento foi pedir a conta por esgotamento psicológico e físico. “Eu estava exercendo a função de babá, empregada doméstica e cozinheira. Eu estava muito sobrecarregada”.
Quando a relação entre patrão-empregado é saudável, o trabalho rende bons frutos e poder ser duradouro. Ivanice Cavalari tem 57 anos e se aposentou exercendo a profissão de empregada doméstica. Durante 20 anos, a aposentada conta que trabalhou, registrada, na mesma casa desempenhando a função de cozinheira. Foi somente no final da sua jornada de trabalho ao londo de duas décadas que o cansaço e os desvios de função aconteceram.
“Meus patrões estavam passando por dificuldades econômicas e tiveram que despedir alguns funcionários. Por sorte, o meu trabalho foi valorizado e eu acabei ficando, mas caiu sob as minhas costas também cuidar das crianças e, em alguns dias, limpar a casa”.
Atualmente Ivanice frequenta a casa de seus antigos patrões como amiga da família. A aposentada diz que por trabalhar tanto tempo na residência, acabou criando laços com as pessoas. “Eu sempre tive um relação muito aberta e confortável com eles. Sempre que me sentia cansada ou com o trabalho acumulado, eu conversava e nós chegávamos a uma solução que era favorável aos dois lados”.
A ex empregada doméstica afirma ainda que gostava de trabalhar nesse ramo, apesar, de receber olhares preconceituosos de algumas pessoas. “Eu não tive a oportunidade de terminar os meus estudos. Trabalhar como empregada doméstica foi o que me restou quando todos recusaram o meu currículo. Às vezes eles achavam que por eu não ter terminado a escola, eu não tinha capacidade de realizar as atividades corretamente. Isso é muito intimidador, eu senti o preconceito”. Ivanice trabalhava de segunda à sexta, com folgas aos finais de semana e, diz que o salário que recebia era suficiente para pagar todas as suas despesas e passar tranquilamente o resto do mês.
O diretor da Agência do Lar Domésticas, Lázaro de Oliveira, afirma que são adotados alguns passos antes da seleção das candidatas, como por exemplo, referência em carteira de trabalho. “As empregadas domésticas também precisam ser simpáticas, discretas e limpinhas. Devem ter bom cuidado com a aparência e não ter o desejo de engravidar”. A agência também verifica se a empregada já processou algum patrão antigo.
Oliveira diz que possui, em média, 100 domésticas cadastradas na empresa. Segundo ele, nunca tiveram nenhum conflito entre chefe e empregado, pois os critérios para seleção são rigorosos e isso faz com que as pessoas encaminhadas fiquem por bastante tempo nas casas.
Ele considera difícil contratar empregadas domésticas. “Ninguém quer mais trabalhar. Querem salário acima do piso e a maioria não tem referência em carteira. Concluo que quem é bom, está trabalhando”.
O diretor fala que a média salarial das empregadas domésticas é de R$ 1.300,00, com carga horário de nove horas por dia e trabalhando cinco vezes na semana. Para aquelas que cozinham, o salário aumenta para R$ 1.800,00. Para horas extras há um aumento de R$ 200,00.
Ele afirma que a empresa dá suporte para as candidatas e que sempre aconselha o registro de carteira. “Todos os nossos associados são orientados a registrar e também, assessoramos no procedimento deste registro”.
Como dica para os patrões, Oliveira diz que não deve existir intimidade entre empregador e empregado, se a contratada não puder fazer nenhuma hora extra é mais seguro achar outra funcionária. “Quando a patroa falar para ficar à vontade e comer de tudo, ela deve deixar bem claro que o salmão defumado e o danoninho das crianças não estão incluídos”, finaliza o diretor da empresa.
Jaqueline Adriana de Mello conta que há cinco anos possui uma contratada para ajudar nos afazeres domésticos. A empregada faz a limpeza da casa todos os dias e, além disso, as refeições também ficam por sua conta. De acordo com Jaqueline, a necessidade de contratar uma ajudante veio devido à casa ser muito grande
“É bastante serviço para uma pessoa fazer tudo sozinha, então eu optei por contratar uma ajudante, já que a correria do dia a dia não me deixava parar em casa”.
A empregada doméstica de Jaqueline não foi contratada por agência de emprego, já que é uma pessoa conhecida da família que trabalhava na área. A funcionária está registrada pela empresa que a família de Jaqueline possui. “Acho que por ser uma pessoa próxima a mim, não passei por nenhum tipo de problema com ela”.
A empresária Claudine Gobbi relata que possui uma empregada doméstica, que trabalha na casa quatro vezes na semana e uma diarista, que auxilia com outros serviços. Como passa o dia todo fora de casa trabalhando, Claudine viu a necessidade de contratar uma empregada doméstica para fazer os serviços da casa.
Ela afirma nunca ter tido nenhum problema com a funcionária e também conta que ela já está trabalhando com a família há 13 anos. “Na época eu não tive dificuldade em encontrar alguém para realizar o trabalho. Ela foi indicação de uma antiga patroa”. A empresária fala que a funcionária possui carteira assinada.
A advogada Luciane Cristina Dropa assegura que um dos principais problemas enfrentados pelas empregadas domésticas é o fato de não ter a carteira assinada. Entretanto, esse não é o único. “O empregador pode não fazer os recolhimentos devidos, como o fundo de garantia, prejudicando o empregado. Outra situação também está no afastamento e aposentadoria, em que, algumas vezes, é necessário recorrer ao judiciário para ter os direitos assegurados”.
Luciane comenta que existem situações que ocorrem, mas que não se enquadram na função de empregado doméstico, como por exemplo, a realização de tarefas que exijam o cuidado de bebês e idosos, seria errada, pois tais situações são oriundas de profissões diferentes e também de diferenciação salarial. “Outro problema que é bastante comum é o empregado sofrer assédio moral e por ter a necessidade do emprego, acaba não relatando tal fato para ninguém e aceita a relação estabelecida pelo patrão”.
A advogada acredita que a lei que foi criada em 2015 fez com que essa classe ficasse mais assegurada, já que o depósito do fundo de garantia se tornou obrigatório e também foram previstos adicionais noturnos e horários para alimentação. No entanto, ela acredita que as empregadas domésticas ainda possuem um ponto negativo na lei, que é a falta de configuração de acidente de trabalho. “É uma das profissões em que mais acontecem acidentes de trabalho, mas que não possui nenhuma lei que trata os devidos cuidados caso isso ocorra”.
Luciane conta que no caso do relato da empregada doméstica citada na reportagem, deveria existir um processo contra a família, pois ela nunca recebeu nada a mais para exercer serviços que iam muito além de sua profissão exigida.
Além disso, a presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Empregados Domésticos de Curitiba e Região Metropolitana do Estado do Paraná (Sindoméstico), Maria Julia Rodrigues, diz que as empregadas domésticas devem recorrer ao sindicato sempre que precisarem de orientação sobre seus direitos. “Principalmente quando os patrões não registram o empregado na carteira, a orientação do sindicato é fundamental”.
Caso ocorra desavenças entre patrão e funcionário, a organização estará pronta para entrar com ação na justiça sobre danos morais, segundo a presidente. “O nosso sindicato tem duas advogadas para garantir os direitos dos trabalhadores domésticos. Hoje esse trabalhador tem direito ao FGTS, seguro desemprego e acidente”. Além disso, Maria Julia diz que o empregador precisa realizar o cadastro no E-Social, que é um portal online do governo em que as informações relativas aos trabalhadores, como vínculos, contribuições previdenciárias, folha de pagamento, comunicações de acidente de trabalho, aviso prévio, escriturações fiscais e informações sobre o FGTS acontecem.
Lucélia Padilha conta que trabalha como empregada doméstica, na mesma casa de família, há aproximadamente 30 anos. A emprega doméstica realiza serviços na cozinha e afazeres simples do cotidiano, como tirar o pó dos móveis e passar pano pela casa, por exemplo. Para Célia, como prefere ser chamada, o serviço que realiza deu muito certo porquê o respeito entre ela e os patrões sempre esteve em primeiro lugar e assim, um sentimento de família, acabou se formando entre as partes.
Números ligam a profissão com fatores históricos
De acordo com um estudo realizado entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Ministério do Planejamento, e a ONU Mulheres, um dos principais motivos para essa classe ter a caracterização do perfil como feminino, de baixa escolaridade e, em sua maioria, negra, se deve aos dados históricos de 1995 a 2015, que apontaram um cenário evolutivo das noções de raça e gênero associados ao trabalho doméstico.
Em 2015, o país comportava 6,2 milhões de empregados domésticos, desse número, 5,7 milhões eram representados por mulheres. Além disso, 3,7 milhões eram negras e/ou pardas e 2 milhões brancas. O nível escolar das brancas correspondia a 6,9 anos de estudo e, no caso das afrodescendentes, o índice era de 6,6 anos.
Para o sociólogo Gilberto de Miranda, a demanda por esses profissionais é grande porque muitas pessoas, que trabalham como empregados domésticos, não se sentem incentivadas a avançar nos estudos e, assim, alcançar melhores oportunidades no mercado de trabalho. “Por se tratar de uma classe discriminada e, em alguns casos, de origem periférica, eu acredito que não há muito apoio governamental para a luta por direitos dessa categoria”.
Miranda conta que o preconceito com esses trabalhadores é histórico e o processo de escravidão brasileiro contribuiu efetivamente para que a intolerância com essas pessoas crescesse com o passar dos anos. Para ele, as pesquisas que mostram dados de que o maior número de empregadas domésticas são negras é uma reafirmação da desigualdade social que o país vive.