Imunidade tributária: Curitiba deixa de arrecadar mais de 46 milhões de reais com Igrejas e Templos religiosos

Valor deixado de ser arrecadado é três vezes maior que o investimento em obras pela Secretaria de Educação em 2023. E os benefícios vão aumentar
Por Maria Luísa Cordeiro
Maria sai de casa todo domingo às 18 horas. Ela calça os melhores sapatos, coloca sua melhor roupa, penteia os cabelos pretos compridos. Antes de sair, checa se está levando seus documentos, celular e a chave do carro. Depois de 10 minutos de viagem, estaciona o carro em frente à igreja próximo da sua casa. Lá, encontra com velhos amigos, dá risada no portão de entrada com um comentário do segurança e brinca com as crianças que estão jogando amarelinha no hall de entrada do salão.
Eu não conheço dona Maria. Mas aposto que você conhece uma. Assim como a nossa personagem fictícia, outras milhares de pessoas fazem o mesmo ritual nos 2236 templos religiosos em Curitiba.
A ligação entre Igreja e Estado é tão antiga quanto a própria instituição. Até 1890 a Igreja Católica era a religião oficial do Brasil, e tinha grande poder nas decisões políticas. Por mais que com a Proclamação da República o Brasil tenha se tornado laico, esses resquícios religiosos ainda são sentidos.
A laicidade garante que o Estado não tenha uma religião oficial e a defesa de que todas as religiões sejam respeitadas, porém o que vemos são bancadas no congresso cada vez mais voltadas às religiões – principalmente evangélicas e católicas. A mais famosa, e óbvia, participação da Igreja no Estado é com a Frente Parlamentar Evangélica, uma bancada no Congresso Nacional que se define como defensores da liberdade religiosa, mas o que se percebe é a imposição de preceitos religiosos na tomada de decisões políticas.
Na prática, uma das maiores comprovações que as religiões não estão tão separadas do governo como imaginamos é a imunidade fiscal que templos religiosos possuem. A partir de levantamento exclusivo realizado a partir do cruzamento de dados de alvarás válidos utilizados para fins religiosos e as informações do Sistema de Equipamentos Urbanos de Curitiba (SEUC), 2236 templos religiosos em Curitiba possuem imunidade fiscal, isto é, são isentos de tributação de acordo com a Constituição Federal.
A imunidade do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) para entidades religiosas em Curitiba resulta em uma perda de arrecadação anual de aproximadamente R$46.447.313,85. A Federação Profissional de Umbanda e Candomblé F.P. seria a maior contribuinte, com R$2.614.576,97. Seguida pela Irmandade Filantrópica e religiosa Seara de Jesus (R$ 1.801.210,69); Igreja Mundial do Poder de Deus (R$ 1.676.729,00), a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (R$ 85.456.409,01) e a Igreja Universal do Reino de Deus (R$ 1.361.428,72).
A título de comparação, de janeiro a dezembro de 2023, a Secretaria Municipal de Educação de Curitiba investiu aproximadamente R$16 milhões em obras e instalações, utilizando recursos provenientes dos impostos pagos. Este valor é três vezes menor do que o montante que poderia ter sido arrecadado dos templos religiosos. De março a dezembro de 2020, o Fundo Municipal de Saúde gastou R$36 milhões em materiais de consumo para o enfrentamento da COVID-19. Novamente, esse valor é inferior ao que poderia ter sido arrecadado pelos cofres públicos, caso as igrejas não fossem beneficiadas pela imunidade fiscal.
A PROBLEMÁTICA
As igrejas, além de serem um espaço religioso, também cumprem uma função social. Promove discussões sobre valores éticos e morais, mas principalmente acolhe todos aqueles que necessitam. Atualmente as igrejas sobrevivem, em sua maioria, apenas com doações; e por isso o valor arrecadado seria utilizado para a manutenção e não visando o lucro, e dessa forma a imunidade fiscal seria um incentivo. Ou seja, é uma forma do Estado incentivar instituições que atuam onde o governo falha.
Essa reportagem tentou contato com mais de cinco instituições religiosas, mas não houve respostas.
Os críticos da proposta afirmam que essas imunidades poderiam auxiliar instituições que utilizam igrejas como fachada, uma vez que eles não são obrigados a prestar contas, e poderiam usar para lavagem de dinheiro, por exemplo. Foi o que ocorreu em 2023, quando o Ministério Público de Minas Gerais identificou uma rede de lavagem de dinheiro que utilizava empresas fantasmas, como uma rádio e uma igreja evangélica. A movimentação alcançou R$6 bilhões.
De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), centros religiosos aumentaram vertiginosamente ao longo dos anos. Em 1998, o número total no país era de 48.927. Em 2021, o valor chegou a 124.529 instituições. Em 2021, entre os templos existentes, 52% eram evangélicos pentecostais ou neopentecostais, seguidos por 19% evangélicos tradicionais e 11% católicos.
A IMUNIDADE
De acordo com um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), o pagamento de impostos representa 40,82% do rendimento médio brasileiro. Isso significa que a maioria da população brasileira precisa trabalhar 149 dias somente para pagar impostos. No entanto, instituições religiosas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, que recebeu, segundo uma reportagem do Intercept, R$ 33 bilhões somente em doações bancárias entre 1º de janeiro de 2011 e 31 de julho de 2015, estão isentas de pagar impostos.
É importante destacar que o IPTU é apenas um dos vários privilégios fiscais, que incluem o Imposto de Renda (IR), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).
A base de cálculo para definir o quanto a cidade de Curitiba deixa de arrecadar com o IPTU foi a alíquota estipulada pela Prefeitura de Curitiba que incide sobre o valor venal do imóvel ou terreno. Para calcular o valor do imóvel, utilizou-se o seguinte método: multiplicou-se a área do imóvel construído pelo valor do metro quadrado apresentado na Planta Genérica de Valores (PGV) disponibilizada pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC).
Para o economista Laerzio Chiesorin Junior, embora esse cálculo faça sentido, é importante notar que pode ser subestimado devido a outros fatores considerados pela prefeitura para determinar o valor venal e, portanto, o IPTU pago.
TEMPLOS PELA CIDADE
A partir da base de dados analisada, Curitiba possui 2236 templos – ou espaços religiosos – em comparação, Curitiba hoje possui 433 escolas municipais e 156 estaduais, 3 vezes menos a quantidade de centros religiosos.
Dos resultados finais verificados, observa-se que a Cidade Industrial de Curitiba foi o bairro com o maior número de templos religiosos (186), seguido pelo Sítio Cercado (164) e Cajuru (132).Em relação à área do terreno, a maior da capital paranaense é o Jardim Benedito, uma igreja Católica Romana, com 316.432,00 m². Quanto à área construída, o maior imóvel é a Pontifícia Universidade Católica do Paraná, classificada como uma entidade sem fins lucrativos de caráter religioso, com 108.414,2 m². Apenas as áreas dos terrenos de todos os templos religiosos representam 1,10% de toda a área de Curitiba quando somadas.
Nos gráficos abaixo pode-se verificar os cinco maiores e menores templos em área construída; e os cinco maiores e menores terrenos utilizados para fins religiosos.
A METODOLOGIA
Essa reportagem contou com uma apuração exclusiva, resultado em 40 horas de trabalho para montar um banco de dados que levou em conta dois conjuntos de dados diferentes:
- A partir da planilha de alvarás disponibilizados pelo portal da transparência da prefeitura de Curitiba, em que foram filtrados apenas aqueles que tinham a permissão de atividades de organizações religiosas e filosóficas, sede administrativa de entidades religiosas, e serviço de promoção e assistência religiosa;
- Pelo Sistema de Equipamentos Urbanos de Curitiba (SEUC), produzido pelo Setor de Geoprocessamento do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC).
Com esse resultado preliminar, foram excluídos imóveis que possuem dois ou mais alvarás no mesmo endereço, uma vez que o IPTU é calculado pelo valor venal do imóvel, e não pela quantidade de alvarás que ele possui.
Dessa forma, resultou em 2236 imóveis diferentes que são utilizados como templos ou centros religiosos. A partir dos endereços desses imóveis, foi verificada a inscrição fiscal no Mapa Cadastral do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). Com esse dado, foi acessado o serviço online de consulta informativa de Lote da Prefeitura de Curitiba para verificar informações como tamanho do terreno, área do imóvel construído, histórico de permissões de reformas, utilização dos sublotes, entre outras.
Desses 2.236 imóveis, 528 dos endereços não foram encontrados na base do IPPUC. Desta forma, não foram localizados o tamanho do lote e não foram calculados o valor estimado do IPTU. No entanto, destaca-se que esses 528 imóveis foram contabilizados no total de templos religiosos e em qual bairro estão localizados. Ao questionar a agência, eles informaram que o sistema de busca de lotes utiliza a numeração oficial da Prefeitura, o que muitas vezes não coincide com a numeração de porta, causando esse problema de cruzamento de informação. Além disso, 26 imóveis estão com a inscrição imobiliária bloqueada ou são considerados imóveis públicos. Novamente essas propriedades não puderam ser calculados no valor do IPTU, mas foram contabilizados no valor total de igrejas.
Em resumo, dos 2236 imóveis encontrados que possuem fins religiosos, o IPTU estimado se refere apenas a 1.682, ou 75% do total. De forma que podemos afirmar que esse valor estimado em R$46 milhões ainda está subestimado.
A LEGISLAÇÃO
O artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal afirma que é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre: entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes; e patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei.
De acordo com Art. 42 do Código Civil brasileiro de 2002, as organizações religiosas são consideradas pessoas jurídicas de direito privado, ou seja, para funcionar necessitam registrar os seus atos constitutivos, além de ser garantidas que o poder público não tem poder de negar o reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.
O IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO
Os imóveis utilizados para fins religiosos possuem imunidade tributária, e essa deve ser requerida anualmente na prefeitura com base em algumas exigências: O imóvel deve ser predial e locado para entidade religiosa que o utilize como templo; ser comprovada a atividade religiosa no imóvel locado na data do pedido; e o locador não poderá ter qualquer participação na administração e representação da locatária.
De acordo com a prefeitura, a imunidade do IPTU se aplica unicamente às áreas destinadas à prática de cultos religiosos, não beneficiando as áreas cedidas ou utilizadas por terceiros e nas quais se desenvolvam atividades de natureza econômica. A coleta de lixo é paga normalmente.
A prefeitura utiliza os recursos do IPTU para realizar serviços e obras. Aqui destaco: Refeições a R$ 3 nos cinco restaurantes populares de Curitiba; Gêneros alimentícios 30% mais baratos nos 35 Armazéns da Família; Até 5 refeições diárias para os estudantes da Rede Municipal de Educação; Apoio a atletas, paratletas e equipes através da Lei de Incentivo ao Esporte; construção e reformas em teatros e espaços culturais e de lazer; pavimentação e melhorias em sistemas de transporte coletivo; construção de escolas e creches; Uniformes, coletes balísticos e munição da Guarda Municipal de Curitiba; atendimento no SUS Curitibano, além da contratação de funcionários da saúde; entre outros investimentos.
OS BENEFÍCIOS NÃO PARAM
Além de todos esses privilégios já comentados na reportagem, foi aprovado dia 27 de fevereiro na Câmara dos Deputados uma proposta de Emenda à Constituição (PEC), que busca aumentar a imunidade fiscal de templos e igrejas.
Se aprovada, as igrejas, além de não pagarem os impostos já citados, também não serão tributadas pela aquisição de itens considerados ‘necessários’ para construir o patrimônio e para a prestação de serviços das entidades religiosas. Isso inclui bens e serviços essenciais para o funcionamento das entidades, como energia elétrica, materiais de construção, microfones e caixas de som. Segundo o relator, a ampliação da imunidade fiscal terá um impacto estimado de R$1 bilhão anualmente.
A proposta é de autoria do deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), ex-prefeito do Rio e bispo da Igreja Universal. Inicialmente, a Emenda englobaria entidades sindicais, instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, porém o relator da comissão especial, deputado Dr. Fernando Máximo (União Brasil-RO), limitou o benefício às entidades religiosas.
Esta reportagem foi desenvolvida na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da PUCPR.