A cada mês, 11 meninos desaparecem no Paraná

por Leticia Fortes Molina Morelli
A cada mês, 11 meninos desaparecem no Paraná

Mais da metade dos desaparecidos são crianças do sexo masculino entre os 9 aos 11 anos, segundo levantamento do Sicride

Por Arthur Henrique de Lima Santos e Letícia Fortes Molina Morelli

Dados presentes no relatório anual do Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas da Polícia Civil do Paraná (Sicride) revelam que mais de 60% das crianças desaparecidas no Paraná são meninos. A análise do relatório indica que o percentual de meninos desaparecidos cresceu de 55% para 62% do total de vítimas entre 2018 e 2019. A comparação com base nos números absolutos mostra uma diferença ainda maior entre os gêneros: o Sicride aponta que, em 2018, foram 132 meninos, em um universo de 237 crianças. No ano seguinte, esse dado passou para 141, em um total de 224 desaparecidos.

A sargento da Polícia Militar Tânia Guerreiro, com mais de 30 anos de experiência no atendimento de denúncias na área infantil, atribui essa diferença nos números à maior liberdade com a qual os meninos são criados, o que os deixa mais tempo expostos ao perigo nas ruas do que as meninas. “Normalmente, os pais criam os filhos homens com maior liberdade, deixando que eles brinquem na rua pelo tempo que quiserem. Assim, eles ficam bastante tempo em uma posição de vulnerabilidade, não só diante da vizinhança, como também dos estranhos e oportunistas que passam por ali”, explica Guerreiro.

Mediante análise dos casos solucionados pelo Sicride desde o ano da sua fundação, motivos como violência física, abuso sexual, xingamentos e maus tratos podem estimular a criança a fugir do ambiente doméstico, local onde ocorrem mais de 90% dos casos de pedofilia no Paraná, segundo dados oficiais obtidos pela sargento Guerreiro.

Esses desaparecimentos podem ocorrer não só quando as crianças fogem de um núcleo familiar violento, mas também podem ser causados por ações que independem da vontade delas, ou seja, quando são levadas ou roubadas por outras pessoas. Desde agosto de 2013, a assistente social Lorena Kovalski aguarda notícias do filho, João Rafael Kovalski, que desapareceu na cidade de Adrianópolis, na região nordeste do estado, quando estava prestes a completar apenas 2 anos. “É um pesadelo, a vida nunca mais foi a mesma depois que meu filho sumiu. Filho é amor, é o melhor de mim. E o João é um pedaço de mim que foi embora. Mas eu tenho certeza que vou encontrar ele”, afirma Lorena. Leia mais sobre o caso na matéria correlata.

Vale ressaltar que essas crianças podem ser levadas não somente por desconhecidos, como também por pessoas da própria família. “A maioria das crianças desaparece quando são levadas por casais que não entram em consenso em relação à guarda do filho, ou quando uma das partes não aceita a guarda compartilhada”, afirma Tânia. “Essa situação faz com que um pai ou uma mãe leve o filho consigo sem comunicar a outra parte, principalmente quando essa pessoa já planejava mudar de cidade.”

O que fazer para se prevenir e para denunciar

A sargento afirma que “liberdade sem orientação não funciona”, ressaltando a importância da prevenção para reduzir o número de desaparecimentos. “As crianças precisam entender que elas não podem sair de casa sem decorar o endereço de casa, o telefone dos pais, o endereço e o telefone do local onde os pais trabalham, e o número da polícia”, explica Tânia. “Os pais, por sua vez, precisam orientar os filhos nesse sentido, e lembrá-los que eles só podem sair com a condição de avisarem de hora em hora, para avisar onde e com quem estão.”

Além da divulgação de medidas preventivas, a Polícia Civil do Paraná também orienta como proceder para registrar o desaparecimento de uma criança. Para solicitar atendimento nos casos envolvendo crianças até 12 anos incompletos, é preciso comunicar o Serviço de Identificação de Crianças Desaparecidas (Sicride), da Secretaria de Estado de Segurança Pública, situado na Avenida Vicente Machado, 2.560, Campina do Siqueira, Curitiba, telefone (41) 3224-6822, sem prejuízo do acionamento da Polícia Militar e a outros órgãos que possam colaborar com as buscas.

De acordo com o art. 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a investigação será iniciada imediatamente após a notificação do SICRIDE, que comunicará e fornecerá todos os dados registrados no boletim de ocorrência aos portos, aeroportos, Polícia Rodoviária e companhias de transporte interestaduais e internacionais, a fim de facilitar a identificação da criança e agilizar as buscas.

 

A dor de uma separação forçada

 

Confira o depoimento da mãe de João Rafael, Lorena Kovalski, sobre o dia no qual seu filho desapareceu.

 

Quando o João desapareceu? 

O João Rafael desapareceu em 2013, no dia 24 de agosto. Ia completar 2 aninhos no dia 29, cinco dias depois. Lembro que foi num sábado, no período da manhã. Eu tenho um casal de gêmeos, o João Rafael e a Poliana, eles eram pequeninhos na época. Eu tenho mais dois filhos de outro casamento: a Luriane, de 9, e o Gabriel, de 15.

Você se lembra desse dia com maiores detalhes?

Todo mundo sabe que eu moro em uma casa ao lado da dela, porque família é tudo pra mim. Os quintais são separados por um muro, mas com um portãozinho no meio que dá acesso de uma casa pra outra. Assim, as crianças podiam ir e vir com facilidade, e ficavam ali brincando a manhã toda. No dia que tudo aconteceu, eu estava na casa da minha mãe, que já é de idade e há muito tempo não anda bem de saúde. Levei o João comigo e deixei ele brincando com o avô na cozinha, enquanto eu ajudava minha mãe a estender a roupa no varal. Meu cunhado Lucas também estava na cozinha conversando, enquanto a Poliana e a Luriane brincavam no quintal, perto de mim e da minha mãe.

Se o João estava sob a supervisão de familiares, em que momento ele sumiu de vista?

Chegou uma hora que o João cansou de brincar com o avô, e começou a engatinhar na direção quintal da casa da minha mãe. Meu pai não teve culpa, coitado. Deve ter achado que o neto estava indo atrás das irmãs, e deixou o menino ir. A vó foi quem viu o João atravessando o quintal em direção a minha casa, eu não vi. Ela nem ligou, porque minha casa fica pertinho, e ela tá acostumada a ver os netos fazendo esse trajeto várias vezes por dia.

Quando você se deu conta da ausência do João? Qual foi sua primeira reação?

Lá pelas 10 da manhã, comecei a sentir falta dele [João Rafael], mas fiquei quieta, achando que era coisa da minha cabeça. Foi só o tempo da minha mãe perguntar “Cadê o João Rafael?”, que a gente começou a procurar.  No começo, eu pensei que ele estaria brincando de esconder, ou que tivesse entrado no paiol de galinhas e descido para os fundos da casa, onde passa o rio Ribeira. Depois, passei a ficar com medo. Medo de que alguém tivesse levado meu filho embora  daqui no ônibus das 11 horas da manhã, porque a cidade [Adrianópolis] é divisa do Paraná com São Paulo.

A família colaborou nas buscas? Quais foram as suspeitas para o sumiço do João?

Colaborou sim. Vasculhamos as duas casas, procuramos por tudo que é buraco. A única pessoa que tava na minha casa nesse horário era meu filho Guilherme. Como ele disse que não viu o João entrar na casa, a gente logo suspeitou que ele tinha sido levado por alguém pelo portão da frente de casa, que fica fechado o tempo todo, mas nunca trancado com chave. A cidade é tranquila demais, sabe? A gente nunca precisou de chave pra nada.

Considerando que Adrianópolis é uma cidade pequena, o caso do seu filho repercutiu entre a população?

Repercutiu, sim. Quando eu vi, a cidade inteira já estava me ajudando a procurar o João. Desde a hora que saiu o boato sobre um rastro no rio Ribeira, todo mundo que tinha bote começou a procurar na beira do rio, que estava bem raso, sabe? Dava pra ver todo o fundo dele. Procuramos nas casas da vizinhança, na mata, em tudo que é canto. E nada do meu menino. Depois disso, alguém chamou os bombeiros. Eles chegaram pra ajudar a procurar no final da tarde do mesmo dia, e permaneceram no local procurando por água e também terra. Mas eu vi que nem os bombeiros estavam resolvendo, então pedi pro meu marido ir na Polícia.

E quais foram as orientações dadas pela polícia ao seu marido?

Meu marido voltou pra casa mais preocupado ainda, porque a policial falou que ela só podia abrir a investigação 48 horas depois do desaparecimento. Nessa época essa história de 48h não existia mais, mas como a gente não tinha noção disso [referência à Lei de Busca Imediata], obedecemos a policial e esperamos.

O que aconteceu depois das 48 horas? A Polícia te procurou, ou procurou seu marido, para registrar o boletim de ocorrência?

Procurou. Na época, fui chamada na Polícia Civil mesmo, porque eu nem sabia que existia esse SICRIDE em Curitiba. Eles [SICRIDE] vieram depois de uns 5 dias, e trouxeram uns cães farejadores também pra ajudar na busca. Só que os policiais não ficaram aqui por muito tempo[em Adrianópolis], voltaram para Curitiba rapidinho. O SICRIDE só investigava o caso a partir do que os bombeiros daqui passavam.

Em relação ao andamento da investigação, o SICRIDE foi transparente com vocês?

Olha, eu era intimada o tempo todo em Curitiba, mas não sei como ficou a investigação, porque eu só ia prestar depoimento e voltava pra casa. Eles [SICRIDE] só me falavam: “Ah, tem uma criança desaparecida não sei onde”, insinuando que talvez fosse meu filho. Querendo dar falsa esperança, sabe? Fiquei sabendo de quase nada sobre o inquérito. A última vez que me procuraram foi há cinco anos [2015].

Diante dessa história tão triste, qual é o sentimento que fica?

Eu e o resto da família nunca deixamos de acreditar que ele esta vivo e que foi roubado. O que eu sei é que, no rio, ele não estava. Não é que eu não queira aceitar essa possibilidade, mas como vou aceitar uma morte se não tem corpo? É complicado, revoltante, injusto. Durante esses anos todos, alguns policiais amigos têm nos dado apoio, como a sargento Tânia Guerreiro e sargento Vilde Oliveira Rosa. A Polícia Civil disse que a investigação está encerrada por falta de provas concretas, só depoimentos não bastam. Então só me resta viver com isso, viver com as mesmas pessoas que falaram que meu filho foi roubado, e rezar pra que, algum dia, a justiça seja feita.

O que dizem os citados

Questionada sobre o paradeiro de João Rafael nesta quarta-feira (13), a Polícia Civil do Paraná não se manifestou. A menção mais recente do caso por parte do Serviço de Investigações de Crianças Desaparecidas (SICRIDE) foi em 2015, pedindo desculpas por um erro no sistema causado pela duplicidade dos Boletins de Ocorrência. Segundo nota divulgada pela Polícia, “o erro no sistema aconteceu depois que o SICRIDE deu baixa em um dos BOs, que, automaticamente, encaminhou a fotografia do desaparecido para o site dos encontrados. A foto já foi removida e o site, atualizado”.

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