Na luta pela visibilidade

por Equipe Festival de Teatro
Na luta pela visibilidade

Em meio a tantos estereótipos e preconceitos criados pela sociedade que enxerga, os deficientes visuais buscam quebrar barreiras para ter seu espaço devidamente respeitado

Por Henrique Zanforlin Isabela Lemos

Apesar das dificuldades, as pessoas com deficiências visuais lutam para ter seu espaço reconhecido em Curitiba. Ana Paula de Oliveira Vieira é uma das responsáveis por esse empoderamento. Ela é professora do Instituto Paranaense de Cegos (IPC), onde trabalha há 14 anos, e conta que a sua função é muito mais do que dar aula. A professora incentiva os alunos a se formarem e conseguirem uma vida independente, sendo ela própria um exemplo disso, sendo formada no curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, a capital paranaense possui 43 mil pessoas com deficiências visuais, ou seja, dois a cada 100 moradores são cegos ou possuem baixa visão. Muitos, porém, não têm o mesmo destino de Ana Paula: de acordo com o censo, apenas 17% das pessoas com algum tipo de deficiência terminam o ensino superior no Paraná.

O trabalho de Ana Paula funciona como um reforço escolar, atendendo crianças de até cinco anos, através da estimulação essencial, e adolescentes do Fundamental II até o Ensino Médio. A professora explica que, normalmente, as crianças pequenas aprendem por imitação, observando o que as outras pessoas fazem e repetem os movimentos. Entretanto, uma criança com deficiência visual pode ter dificuldade de reconhecer o que acontece ao seu redor, por isso há a necessidade de um atendimento especializado, no qual a Ana Paula ensina como as coisas são feitas e orienta os pais a fazerem o mesmo.

Entre os mais jovens, a professora conta que muitos estão defasados nos conteúdos por negligência dos colégios. “A maior dificuldade deles é a turma em si que é uma bagunça, os professores que esquecem do aluno [deficiente] e não fazem nem as mínimas adaptações, e as escolas que não se comprometem com o apoio, até para conseguir um material adaptado, acaba sendo bem difícil”. Ainda assim, ela fica feliz em dizer que a cada ano, o número de jovens que lutam pela diplomação é cada vez maior.

Davyd Vinicius Ribeiro, de 23 anos, foi aluno da Ana Paula e hoje cursa Letras na Universidade tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Ribeiro é o primeiro aluno cego a conseguir passar na universidade pela cota do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) destinada a deficientes, e por enquanto sua experiência tem sido uma troca de aprendizagens com a instituição. Segundo ele, todo o material precisa ser adaptado e os professores não foram preparados em suas formações para ensinar um estudante cego. O aluno diz que, às vezes, o professor deixa de explicar o que está escrevendo no quadro, mas são nesses momentos que os amigos se tornam mais presentes. “Quando o professor esquece, os próprios colegas já estão atentos e alertam o professor”.

Acessibilidade

Na verdade, Ribeiro nunca fica sozinho. Sua sombra se chama Amora, um cão-guia que foi escolhido após um teste de perfil com um mês de treinamento em Camboriú, Santa Catarina. O aluno de Letras conta que o cão-guia devolve não só sua velocidade de caminhada, mas também fez com que ele ganhasse visibilidade. “As pessoas vêm muito mais, têm muito mais contato comigo, acham ela bonitinha e acabam tirando suas dúvidas por isso”. Apesar disso, é preciso tomar cuidado, Ribeiro alerta que quando a Amora está em serviço, as pessoas não devem chamá-la, o que pode tirar a atenção do cão-guia e inclusive causar um acidente.

O estudante relata que Curitiba peca em acessibilidade, principalmente quando se trata de calçadas, que vão desde piso tátil que terminam em postes até locais sem a guia rebaixada. Para Ribeiro, isso torna o trabalho do cão-guia ainda mais essencial. “Com o cão-guia, não precisamos muito de piso tátil e mais acessibilidade. Com o cão, a gente ganha muito autonomia. Não passamos por coisas que a pessoa que usa bengala passa”.

Segundo a professora de orientação e mobilidade Lilian Merege Biglia, uma calçada lisa, comumente encontrada em países desenvolvidos, funciona melhor do que a pista tátil. Isso porque a pista só é útil em alguns lugares específicos, como metrôs e praças, mas se tornam inviáveis em shoppings e outros locais nos quais o cego vai precisar de ajuda. “O maior drama da pessoa cega não é a cegueira, é a mobilidade, a relação com o outro”.

Inclusão

Enio Rodrigues da Rosa é pedagogo e diretor do IPC. Ele expõe que as pessoas passam muito tempo debatendo sobre a cegueira e acabam se esquecendo da individualidade da pessoa: “não é pelo fato do sujeito ser cego que padroniza todo mundo, a única coisa que eu posso dizer é que todo cego não enxerga, fora isso, cada sujeito tem uma trajetória de vida, uma caminhada”. O diretor também ressalta que é impossível viver sem ajuda de ninguém em uma sociedade, sendo a pessoa cega ou não, ela depende dos outros de alguma maneira. O que não anula o fato de que o cego enfrenta dificuldades que exigem uma atenção especial. “Ser cego não é qualquer desafio. Em uma sociedade muito marcada pela visão, ser cego não é qualquer brincadeira, mas também não é uma desgraça, é possível superar”.

O pedagogo relata que enfrentou um dilema em um determinado momento de sua vida: “ou encarava a cegueira como um desafio e seguia minha vida, ou ficava o resto da vida chorando dentro de casa”. É esse um dos maiores estereótipos construídos a partir da sociedade que classifica os deficientes visuais como pessoas heroínas ou coitadas. Caso a pessoa siga em frente, é heroína, caso contrário, é digna de pena. Esses foram alguns dos desabafos que permearam a conversa que a reportagem teve com os jovens do projeto ligado à arte, o qual faz parte do IPC.

Ver com as mãos

O projeto Ver Com As Mãos do Instituto Paranaense de Cegos é coordenado por Diele Fernanda Pedrozo de Morais Santo, mestre em Artes Visuais que intermedia o contato da arte com os alunos que, de início, tiveram que aprender o que ela de fato significava. “Quando falamos sobre um cego ler uma imagem, pressupomos que ele já tenha aprendido a ler imagem. Quando falo de uma pessoa que nunca enxergou, ela precisa ser ensinada a ler imagens, senão não consegue ler. É como se ela fosse analfabeta visual – na leitura de imagem. Ler uma imagem é um processo de aprendizado”, explica a professora.

Para falar sobre o projeto, a professora não cita uma palavra, deixa que todos os seus sorridentes participantes contem sobre como o processo de aprendizagem funciona e como tudo foi evoluindo ao longo dos anos em que estiveram lá. Os alunos explicam que o projeto envolve desenhos, teatro, filme e outros tipos de arte, porém, conscientizando sobre como funciona a acessibilidade para os deficientes visuais em locais que disponibilizam essas artes. Para a professora, é muito importante que os alunos vão ao cinema, a museus e a teatros para que eles conheçam contextos históricos, sociais e políticos em torno da arte, mas, principalmente, para mostrar às pessoas que coordenam esses lugares que nem sempre estão preparadas para atender ao público deficiente visual, embora se fale que é aberto “para todos os públicos”.

Outro foco do projeto é discutir e debater situações do dia a dia dos jovens adultos, questões relacionadas a como as pessoas que enxergam veem e pensam sobre a pessoa com deficiência visual. Por isso, Diele pretende começar a disponibilizar os próprios alunos para auxiliar nas postagens do facebook do Ver Com As Mãos, assim, o espaço de discussão não se limita apenas ao instituto, mas sim se a um debate público em redes sociais.

Durante a roda de conversa com os jovens do projeto, várias questões vieram à tona: o pré-conceito, a acessibilidade, a falta de informação da população, entre muitos outros. Juan Carlos Cordeiro de Oliveira tem 16 anos e explicou que, há pouco tempo, uma equipe de uma emissora de televisão gravou uma reportagem distorcendo completamente tudo o que ele havia falado, alegando que ele havia ficado cego (o que não é verdade, visto que tem baixa visão) por negligência dos pais e médicos. O receio de abrir-se com a mídia para contar suas histórias torna-se maior com equipes jornalísticas que reforçam ainda mais o estereótipo deficientes visuais.

No que tange à mobilidade, os alunos não parecem estar satisfeitos com a estrutura que o governo curitibano oferece a eles. Rodolfo Nandes da Cruz, por exemplo, foi a segunda pessoa do instituto a relatar que caiu em um bueiro de obras aberto no meio da calçada. A primeira pessoa foi Enio. “A minha sorte é que ele estava cheio de areia, não de dejetos (risos). Não me machuquei, estou bem até hoje”, o aluno comenta rindo junto aos outros.

Além deste assunto, os pontos de ônibus da capital renderam grandes debates entre os jovens à mesa. O estudante do ensino médio Diego Davi Reis do Prado relata que, por ter fotofobia, precisa usar óculos escuros. Ao usá-los junto com a bengala, comentários surgem à sua volta. “Para subir no tubo, a pessoa olha e já diz ‘ah, judiação, vai cair da escada’”. Para ele, que tem baixa visão, é difícil sentar nos assentos preferenciais porque as pessoas o veem usando bengala e óculos escuro, mas conseguindo enxergar minimamente a tela do celular. “Acham que estamos mentindo, que somos folgados. Xingam sem saber”.

A professora Diele explica sobre as dificuldades que pessoas de baixa visão também enfrentam. “A baixa visão nem sempre é visível, somente agora está sendo um pouco mais tratada. Quando se fala sobre deficiência visual, apenas lembram da cegueira, mas o número de pessoas com baixa visão é infinitamente maior do que o de cegos. É muito mais comum nos depararmos com uma pessoa de baixa visão do que com alguém cego. Mas como temos essa visão clássica do cego com a bengala e óculos escuros, esquecemos que há outras características e que eles sofrem tanto preconceito quanto os cegos. Pessoa de baixa visão é aquela que mesmo com auxílio, não enxerga 100%”.

A todo momento foram vistos rostos alegres, de pessoas bem-humoradas e que lutam para seguir suas vidas de forma normal, assim como o resto das pessoas. Os estereótipos que a sociedade retrata sobre pessoas cegas e de baixa visão não se confirmaram durante a conversa com o projeto Ver Com As Mãos. “​É importante frisar a questão de que nós, pessoas com deficiência, queremos ser vistas como pessoas. Pessoas que têm qualidades, defeitos, pensamentos e opiniões sobre diversos assuntos”, conta Luis Gustavo Moreira de Andrade, que tem 24 anos e está se formando em Letras.

O projeto, acima de tudo, visa a conscientização tanto de pessoas com deficiência visual quanto de pessoas que enxergam. Por isso, Diele explica que os próprios alunos são o papel fundamental para a mudança da visão que a sociedade (que enxerga) tem sobre os cegos e pessoas de baixa visão. A aluna de 17 anos Laura Kaiser dos Santos descreve em poucas palavras a essência do projeto que foi tão importante à sua vida. “Nós já temos a consciência, basta conscientizarmos os outros”.

Respeito

O primeiro passo para as conquistas de espaços é a capacidade de argumentar e escrever. José Simão Stczaukoski tem 61 anos e após 25 anos intermediando empregos para pessoas com deficiências, hoje encerra a carreira ensinando braille a todas as idades. Mesmo com o avanço tecnológico e o uso cada vez mais comum da áudiodescrição, ele acredita que o braille ainda possui um aspecto fundamental para a aprendizagem e o desenvolvimento da argumentação das pessoas com deficiências visuais. “A tecnologia veio para acrescentar, mas não tira o papel fundamental do braille”.

O professor, carinhosamente conhecido como “Simão”, é exemplo entre as pessoas com deficiências visuais. Ele perdeu a visão aos 17 anos em um acidente, mas isso não o impediu de ter a vida que queria. Até o ano passado Simão morava em uma chácara, onde cuidava dos cachorros, pássaros e andava a cavalo. “Se você perguntar para mim: ‘Simão, e se Deus devolvesse seus olhos para você voltar há 45 anos atrás? Eu não iria querer, porque a família que eu construí foi depois de cego. Tenho uma esposa maravilhosa e três filhos formados. Se eu enxergasse, talvez já estivesse morto”.

Além de gostar de cavalgar, Simão também é faixa preta em judô, pegou medalha de bronze nas Paraolimpíadas de 1988 em Seul. Para ele, tudo o que conquistou foi para ser respeitado.  “Todos nós somos preconceituosos, apenas não podemos aceitar a discriminação. Sou formado, tenho pós-graduação e dei aula sobre mercado de trabalho, então me sinto uma pessoa realizada. Não sei se eu seria o que sou hoje caso enxergasse”. Simão começará a dar aulas de judô para os jovens do instituto a partir de agosto deste ano.

[slideshow_deploy id=’26856′]

Autor