O menino e o mundo

por Ex-alunos
O menino e o mundo

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Por Claudia Fernandes

PARTE I

Uma manhã alvoroçada marcou os primeiros eventos daquele dia. A exalação do horror cruzou barreiras geográficas e equalizou o mundo através de um temor em comum.  Donas de casa, executivos de terno e gravata, padeiros e funcionários públicos acordaram com a sensação de que havia algo errado já nas primeiras horas. Crentes e ateus se examinavam de canto de olho enquanto a pergunta pairava inquieta no ar: afinal, é hoje que o mundo acaba?

6 de junho de 2006 foi uma terça-feira. Seis do seis do seis. Dia da Besta. Dia do Apocalipse. Dia do Azar. Para todos os demais efeitos, só mais uma terça-feira. Posturas céticas bamboleavam na medida em que a bizarrice acontecia. Uma mulher na Inglaterra dá a luz às seis horas, do sexto dia, do sexto mês, do sexto ano. Dá o nome de Damien, como se caçoasse do pânico geral. Damien pesa seis libras e seis onças. Só mais uma terça-feira.

Para os moradores do município de Londrina, interior do Paraná, seis do seis do seis começou na forma de uma manhã úmida. A extensa área arborizada da qual a cidade tanto se orgulhava – quase o dobro da amplitude recomendada pela Organização das Nações Unidas! – estava já seminua pelo efeito da chegada do inverno. Quinhentos mil habitantes levantaram para seus afazeres diários e notaram com estranheza a agitação coletiva gerada pela data no calendário. Foi só na zona oeste da cidade, entretanto, que o mundo efetivamente começou a caminharem direção ao apocalipse.

Thales Malassise, 14 anos, tinha uma postura um tanto quanto incomum para um aluno de oitava série. Filho de pais separados, tivera seu primeiro contato com o mundo estudantilhá alguns anos em uma escola particular. A mãe conseguira uma bolsa de estudos que reduziria o valor da mensalidade pela metade. Até aí, nada demais. Até aí, um possível exemplo das maravilhas da inclusão social. O que deveria ter sido uma grande oportunidade, entretanto, acabou servindo apenas como gatilho para uma visão de mundo desafortunada.

A história se repetia todos os dias, como um loopingcruel e desgastante. Thales olhava para seus colegas, crianças ricas de dinheiro e de sorte, e se sentia como peça avulsa no meio do tabuleiro. Não demorou muito para que o complexo de inferioridade chegasse.

 

PARTE II

Aos doze anos de idade, fumou o primeiro baseado. Descobriu que nas rodas da maconha a classe social não importa. “Quando temos alguma coisa a oferecer, ficamos rodeados de amigos”, ele me conta. E depois acrescenta: “Principalmente quando essa coisa gera dependência”.

Fazendo jus às advertências de todo slogan anticannabis, a maconha se tornou porta de entrada para substâncias mais pesadas e menos fáceis de serem pechinchadas. De repente, o vício ficou caro. De repente, aquele garotinho meio negligente, meio infante, estava fazendo assalto à mão armada para financiar traficante de crack.

Preferiu sair de casa. Viver sob as regras da mãe? Isso é coisa de louco. Vendeu quase tudo que tinha para conseguir mais dinheiro. De vez em quando, voltava para casa, pegava alguns objetos e os vendia também. Passou de consumidor a fornecedor. No aniversário de 14 anos, já entendia mais de droga do que Pablo Escobar.

Foi com essa idade, 14 anos, que decidiu voltar à escola. A mãe, após ouvir suas juras e apelos aos céus, acabou matriculando-o em um colégio público de nome Dario Vellozo. Ao mesmo tempo em que se dedicava ao português e à matemática, Thales estudava seus colegas e ia aprimorando as técnicas de venda. O negócio era lucrativo entre os corredores.

O Colégio Estadual Dario Vellozo educava as crianças e adolescentes de Londrina desde o ano de 1958. No início, um grupo de senhores filiados à Loja Maçônica conseguira o alvará para lecionar a um pequeno conglomerado de sessenta alunos, contribuindo para o desenvolvimento da comunidade local. Aos poucos, o projeto fora anexado ao Estado e passara a atender a um número maior de jovens; uma contagem que em menos de dez anos já beirava os duzentos. Naquela terça-feira de junho, os idealizadores do sistema de educação pública estavam prestes a ter seu altruísmo colocado à prova pela primeira vez.

 

PARTE III

Na manhã do sexto dia, do sexto mês, do sexto ano, Thales se remexia inquieto na penúltima carteira da sala de aula. Não era a previsão de um apocalipse, entretanto, que o perturbava, e sim os 49 gramas de maconha enfiados dentro de sua cueca. Na verdade, o fardo original continha bem mais do que aquilo. Tinha arranjado meio quilo para repartir entre venda e uso pessoal. Naquela manhã úmida e fria, um de seus amigos estava prontamente posicionado em frente a um dos bares mais badalados de Londrina para tentar vender parte do pacote. E para Thales, sobrara a incumbência de distribuir os 49 gramas restantes. Uma porção que agora fazia volume dentro de suas calças.

Foi quando uma dupla de policiais irrompeu na sala que Thales sentiu seu sangue gelar. A professora deu espaço para que elesfalassem. Um murmurinho inquietante tomou conta do local, como se alguém já esperasse por aquilo, como se não fosse de todo uma surpresa. Denúncia anônima. Ele lembra ter ouvido essas palavras. Um dos policiais noticiou, com a voz firme e autoritária, que faria uma revista geral. Thales se encolheu na cadeira ao ver que seria o primeiro, e talvez o único, a ser inspecionado. Quem quer que tivesse feito a ligação, claramente tinha tomado o cuidado de acrescentar uma descrição física.

Não tentou resistir. Podia ser inconsequente, mas sabia reconhecer uma causa perdida quando a via. Thales sacou o pacote plástico de dentro da cueca e entregou em silêncio, sentindo o calor da humilhação o invadir. Foi algemado à carteira da professora; obrigado a encarar de frente os colegas e o imensurável vexame. Ficou ali, algemado, até que cada aluno terminasse de ser revistado também. Nenhuma outra criança tinha maconha na cueca. Nenhuma outra criança sabia sobre o segundo traficante, parado em frente àquele bar e alheio aos acontecimentos da manhã. Difícil dizer quanto tempo durou a inspeção. Quinze minutos? Vinte?

Foi espremido dentro de um carro que derrapava as rodas pelas ruas de Londrina. Se apertasse os olhos, podia ver o Colégio Estadual Dario Vellozo ficando para trás, se tornando um borrão distante que agora se juntava a todos os outros borrões revoltos de seu passado. Se apertasse os olhos, podia ver cada pedaço de seu mundo sucumbir e despedaçar, como se o lado menos nobre de sua jornada finalmente tivesse se tornado o único lado em que era possível estar.

Seis do seis do seis foi uma terça-feira. Dia da Besta. Dia do Apocalipse. Dia do Azar. Para todos os demais efeitos, só mais uma terça-feira. E entre tanta gente amedrontada, foram os moradores da zona oeste de Londrina os primeiros a perceberem que o apocalipse tinha, de fato, chegado. Chegara em forma de menino. De criança. De uma sociedade que falhava ao deixar que um aluno de oitava série cedesse às perversidades da vida.

E entre tantos pequenos mundos que circulavam, atravessando as ruas, dirigindo apressados para o trabalho, cruzando uns com os outros, foi em Londrina, zona oeste, que um pequeno mundo validou a previsão do apocalipse e pareceu chegar ao fim.

 

PARTE IV

Paulo* levantou cedo da cama e foi tomar uma ducha. Tinha passado a noite anterior migrando entre as atividades recreativas da Clínica Prolov, o que significava dividir seu tempo entre dinâmicas de grupo, círculos de oração e alguns filmes antigos. Já fazia uma semana desde que decidira, por conta própria, que era hora de resolver seu problema com as drogas. Queria se libertar de seus vícios, um a um.

Alto, magro e de cabelos encaracolados, Paulo, que agora compartilhava com Thales o mesmo teto, penara um bocado para chegar onde estava. Queria ser jogador de futebol, mas um problema no joelho acabou fazendo com que adaptasse seu sonho e estudasse fisioterapia esportiva. Em pouco tempo, tornou-se fisioterapeuta oficial do time do Palmeiras. O sucesso, entretanto, foi logo encoberto por uma sequência agonizante de tragédias. Sem qualquer aviso prévio de desordem familiar, viu o pai assassinar a mãe com um tiro de revólver, correr até a esquina e balear a própria cabeça. A mãe morreu na hora. O pai caiu em estado vegetativo e nunca mais saiu da cama, mas sobreviveu.

Para tentar amenizar o trauma e o pesar do que lhe ocorrera, começou a fazer uso de algumas substâncias, misturadas com outra e mais outra. Acabou se rendendo e procurando ajuda. Agora, internado na Clínica Prolov, uma casa grande rodeada de jardins na cidade de Londrina, começava a conhecer histórias tão desafiadoras quanto a sua. Muita gente ali já tinha passado diversas vezes pela cadeia. Entre eles, um antigo morador da zona oeste, com histórico de tráfico e assaltos mal sucedidos. “Thales Malassise, muito prazer”.

Quatro anos haviam se passado desde que Thales fora colocado dentro de uma viatura e dito adeus à vida estudantil. Naquela época, a quantidade de drogas em sua cueca não fora suficiente para enquadrá-lo como traficante. No lugar da prisão, fora obrigado a comparecer a um projeto educacional uma vez por semana durante vários meses.

No ano que se seguiu, teve mais algumas passagens breves pela polícia. Se afundou cada vez mais em um submundo que parecia sugá-lo para dentro. Ao invés de futebol, skate ou videogame, passou seus 15 anos praticando tráfico e assalto à mão armada. Acabou entrando em um esquema que buscava lança-perfume na Argentina e levava para os morros do Rio de Janeiro.

Numa destas idas e vindas, a coisa deu muito errado. Foram enquadrados em Curitiba e encarcerados imediatamente. Era a sexta vez em que Thales era preso. Após uma audiência na presença de seu pai, conseguiu reverter a pena de nove meses para uma internação em uma casa para dependentes químicos em Londrina. A tal da Clínica Prolov. Pensou que assim enganaria a juíza e conseguiria bolar um plano de fuga. Esperaria três meses, e então sumiria dali.

Acabou descobrindo que a Clínica Prolov era uma inversão de expectativas. Havia uma estranha sensação de prazer em estar ali. Ficou três meses, como prometera a si mesmo. Decidiu ficar mais três. E mais três. Conheceu gente que tinha passado por tanta coisa quanto ele e agora estava disposta a mudar de vida. Conheceu Paulo, o fisioterapeuta, e ouviu tudo sobre o assassinato e o rancor que sentia de seu pai. Conheceu Felipe*, filho de família rica, que chegara à clínica com cabelo e barba por fazer, sem dentes e pesando 40 quilos. Viu Fernando se transformar em um novo homem e sentiu que se transformava também.

No sexto mês de tratamento, Thales foi beneficiado por um programa de reinserção social e conseguiu o primeiro emprego. Trabalhou em uma empresa de jardinagem durante os três últimos meses na clínica e foi contratado logo que recebeu alta. Dedicava-se de segunda à sábado, semeando, podando, aparando. Pela primeira vez, entendeu os benefícios da vida simples e honesta. Seu corpo e mente estavam limpos. Sentia-se bem.

*Nomes fictícios

 

PARTE V

“Como eu queria que por um segundo a realidade fosse ao contrário
Que o patrão andasse de busão e trabalhasse por um salário
Que a carne não fosse tão fraca,
que não empaca enquanto me ataca
E que as pessoas não morressem
na fila do hospital esperando a maca”

 

O mundo nem sempre é gentil com aqueles que erraram. Thales sabia disso, mas só comprovou verdadeiramente quando arranjou seu segundo ofício, desta vez em uma empresa de comunicação visual. Dividia suas tarefas com dois outros funcionários que também eram ex presidiários. Os três trabalhavam com total devoção ao serviço, mas não importava o que fizessem, continuavam sendo tratados como inferiores. Os patrões dirigiam-se a eles de forma rude e exigiam que trabalhassem em uma espécie de porão, longe dos outros funcionários. Na caminhada da ressocialização, um grande e doloroso calo.

Vivendo com a constante sensação de que seus patrões o discriminavam pela bagagem que trazia do passado, Thales percebeu que precisava se tornar dono de si mesmo se quisesse se livrar do sentimento de inferioridade. Decidiu largar o mundo corporativo e investir na música. Já arriscava algumas rimas em campeonatos freestyle desde 2004, mas por conta da instabilidade causada pelas drogas, nunca tinha se dedicado verdadeiramente à vocação. Agora, limpo e cheio de vida, sentia que era hora de correr atrás de ambições maiores.

Como se o universo conspirasse a seu favor, Thales observou o cenário do rap no Brasil atingir um momento convenientemente favorável. Junto de três amigos, montou o grupo chamado de Uzi e experimentou a sensação de botar sua vivência no papel. Descobriu que tinha voz. Levou o Uzi para se apresentar em casas de shows, festas e outros eventos no sul do país. O sucesso foi tanto que acabou abrindo o próprio estúdio, carimbado com o selo de Houzi Records. Atualmente, o Houzi funciona como gravadora para outros artistas que também procuram pela própria voz.

Thales Malassise hoje é nome de rapper. Assim como tantos outros antes dele, o menino da zona oeste encontrou na arte uma chance de contar a sua história. Compõe suas músicas da mesma forma que compôs sua vida até aqui: partindo do zero, contando apenas consigo mesmo e evoluindo a cada vírgula.

 

“Os problemas que se foram agora ficam na memória
Atingindo objetivo e outros ficam com a glória
Se a gente não lutar ninguém vai reconhecer
Nossa história tem derrotas, mas eu sei que vou vencer”

 

Esse perfil faz parte da matéria relacionada com a reinserção de ex detentas no mercado de trabalho, você pode conferir essa história nesse link. Você também pode ouvir o depoimento em áudio de Daiane Mariano, uma ex detenta que sofre com o preconceito na busca por um emprego.

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